Convocar o espírito da matéria.
Desenhar. Pessoas, coisas e lugares. Arquitectura.
Convocar o espírito da matéria.
Desenhar. Pessoas, coisas e lugares. Arquitectura.
Nota:
"...O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais não podem promover o despejo administrativo de indivíduos ou famílias vulneráveis sem garantir previamente soluçoes de realojamento, nos termos definidos na lei...".
Lei de Bases da Habitação
(n.º 4 do art.º 13.º da Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro)
Imagem: Tiago Petinga / Lusa
Muitos sóis e
luas irão nascer
Mais ondas na
praia rebentar
Já não tem
sentido ter ou não ter
Vivo com o meu
ódio a mendigar
Tenho muitos
anos para sofrer
Mais do que
uma vida para andar
Beba o fel
amargo até morrer
Já não tenho
pena sei esperar
A cobiça é
fraca melhor dizer
A vida não
presta para sonhar
Minha luz dos
olhos que eu vi nascer
Num dia tão
breve a clarear
As águas do
rio são de correr
Cada vez mais
perto sem parar
Sou como o
morcego vejo sem ver
Sou como o
sossego sei esperar
[José Afonso]
"(...) Não é que tenhamos uma reserva a priori relativamente a tudo o que brilha, mas, a um brilho superficial e gelado, preferimos sempre os reflexos profundos, um pouco velados; seja nas pedras naturais seja nas matérias artificiais, esse brilho ligeiramente alterado que evoca irresistivelmente os efeitos do tempo. 'Efeitos do tempo' é o que soa bem, mas, para dizer a verdade, é o brilho produzido pela sujidade das mãos. Os Chineses têm uma palavra para isso, 'o lustro da mão'; os Japoneses dizem a 'usura' (...)"
(In Elogio da Sombra, de Junichiró Tanizaki)
Neste ensaio de 1933, compreende-se melhor a riqueza e uma certa especificidade da cultura oriental.
E quem disse que a arquitectura, a "rainha" de todas as artes, mesmo com séculos e séculos de história, não tem uma relação directa face à forma em como hoje podemos continuar a organizar o território?
- De agora em diante
serei eu a descrever as cidades – disse o Kan. – Tu nas tuas viagens
verificarás se existem.
Mas as cidades
visitadas por Marco Polo eram sempre diferentes das pensadas pelo imperador.
- Contudo eu tinha construído
na minha mente um modelo de cidade de que deveria deduzir-se todos os modelos
de cidades possíveis – disse Kublai. – Contém tudo o que corresponde à norma.
Como as cidades que existem se afastam em grau diverso da norma, basta-me
prever excepções à norma e calcular as combinações mais prováveis.
- Também pensei num
modelo de cidade de que deduzo todas as outras – respondeu Marco.
É uma cidade feita só
de excepções, impedimentos, contradições, incongruências, contra-sensos. Se uma
cidade assim é o que há de mais improvável, diminuindo o número dos elementos anormais
aumentam as probabilidades de existir realmente a cidade.
Portanto basta que eu
subtraia excepções ao meu modelo, e proceda com que ordem proceder chegarei a
encontrar-me perante uma das cidades que existem, embora sempre como excepção,
Mas não posso fazer avançar a minha operação para além de um certo limite:
obteria cidades demasiado verosímeis para serem verdadeiras.
(…)”
In “As cidades Invisíveis”, de Italo Calvino
Imagem ZIPZIP I Caldas de S. Jorge,
projecto 2009/2010
Por estes dias, cumpre-se um ano desde que, contrariando a “zona
de conforto”, abracei o desafio de contribuir para pensar o desenvolvimento e
renovação de um “velho território” conhecido.
Espinho, cidade onde há quase 30 anos aprendi arte e design,
cidade onde estudei música, cidade da minha juventude e onde fiz muitos amigos.
Terra onde vivi cerca de dois anos.
Não tinha, pois, como rejeitar o desafio de aí regressar.
Agora profissionalmente.
Estando a representar uma experiência absorvente, mas extraordinariamente
enriquecedora, este último ano permitiu renovar a esperança de que, nas nossas vidas, é sempre possível fazer mais. Mesmo com pouco, é possível contribuir
para a melhoria da qualidade de vida dos outros.
Encontrei, em certa medida, um “território” descrente, estruturalmente
desequilibrado, com inúmeras debilidades. Mas também encontrei um território
com condições absolutamente excepcionais, um verdadeiro diamante por lapidar. Com
gente que merece uma renovada esperança. Gente com quem se possa estar, dialogar e acompanhar.
Nesta ainda curta, mas produtiva aventura, tenho conhecido
pessoas extraordinárias, que me receberam de braços abertos. Como se fosse um
entre os demais. É assim Espinho.
Agradeço, por isso, a todos os colegas e principalmente ao
Miguel que, estou certo, marcará indelevelmente, a história daquela terra.
O futuro será sempre uma incógnita… nesta ou naquela terra. Não
somos de um só sítio, de um só lugar…
Mas, enquanto o valor do tempo for dominante, continuarei, naturalmente,
a alimentar “o sonho e o desafio da irreversibilidade D’ Espinho”.
A
reflexão que a seguir se descreve, resulta de uma análise histórica a um conjunto de acontecimentos ocorridos nos últimos 100 anos em Caldas de S. Jorge,
que poderiam ter marcado e reorientado o reforço da identidade e posicionamento
estratégico daquela estância termal no topo dos destinos turísticos de Portugal.
Tratam-se
de acontecimentos e episódios comprovados, factual e documentalmente, mas
talvez desconhecidos da generalidade dos seus cidadãos.
Servindo
de pouco a velha máxima “chorar sobre leite derramado” importa, mesmo
assim, reflectir sobre os “encargos” e repercussões que determinadas decisões,
tomadas algures, por quem-quer-que-seja, tiveram e têm sobre as gerações
actuais ou futuras. No limite, porque as nossas decisões de hoje terão o
verdadeiro reflexo nas gerações dos nossos filhos ou mesmo dos nossos netos. É
disso que se ocupa a disciplina do planeamento.
Dos
factos,
I.
Ano 1915
Sábado, 18 de
Setembro de 1915.
Quem, há quase
um século, em Caldas de S. Jorge, numa manhã solarenga de finais de Verão,
cinco anos após a instauração da República, tivesse a oportunidade de desfolhar
o jornal “Democrata Feirense”, órgão do Partido Republicano Português,
deparava-se com uma notícia que, vinda da então Comissão Executiva da Câmara
Municipal do Concelho e Vila da Feira, presidida por Vitorino Joaquim Correia
de Sá, aparentava ser uma das chaves para o desenvolvimento e para a promoção
turística desta aldeia termal.
“...Faz público em conformidade da deliberação da Câmara Municipal de 31 de
Agosto findo, e da deliberação desta Comissão Executiva tomada em sessão
ordinária de 14 do corrente mês de Setembro, que pelo prazo de sessenta dias,
que termina às quinze horas de 15 de Novembro próximo, se recebem propostas em
carta fechada, que serão abertas em sessão do dia seguinte, para a construção
de um Hotel-Casino nas Caldas de S. Jorge, sob garantia de juro prestada pela
Câmara Municipal nos termos das condições e cláusulas patentes na secretaria
municipal, cuja cópia será remetida ou entregue a quem a requisite.
Paços do Concelho da Feira, 15 de Setembro de 1915.”
- Fazia
sentido.
À semelhança
do que se passava no país, e principalmente em aldeias ou vilas termais, a
lógica de bem receber os aquistas e de lhes proporcionar a comodidade e o
descanso desejável, fazia todo o sentido. Era necessária a procura de novos
conceitos ligados ao turismo que pudessem ser uma mais valia na promoção das
termas de Caldas de S. Jorge.
Com um
programa ambicioso para a época, o Hotel-Casino compreenderia, pelo menos,
vinte quartos, sala para bilhar e jogos lícitos, na primeira fase a construir,
a qual deveria ficar concluída na época balnear de 1916. Interessante era também
o facto da entidade gestora ver-se obrigada a estabelecer, logo que fosse
construída aquela primeira fase, um “...serviço de automóveis e carros de
transporte de passageiros e bagagens entre o Hotel-Casino e a estação ou
estações das vias férreas mais próximas, devendo então ser sujeita à aprovação
da Câmara Municipal a tabela de preços do transporte de passageiros e bagagens
em automóveis ou carros referidos, quando fossem requisitados pelos hóspedes do
Hotel-Casino...”.
II. Ano 1929
Sábado, 21 de
dezembro de 1929.
No Semanário
Republicano Independente “Correio da Feira”, era publicada, na sua primeira
página, uma carta dirigida ao Engenheiro dos Caminhos de Ferro de Portugal,
Conselheiro Fernando de Sousa. Na missiva, era feita referência à importância
estratégica de incluir no Plano da Rede Ferroviária Nacional, um ramal da Linha
do Vouga que promovesse a ligação da Vila da Feira até à estância termal de
Caldas de S. Jorge.
“…Aos
passageiros do norte, que em Espinho tomassem o Vale do Vouga, não lhes
custaria decerto fazerem o transbordo na Vila da Feira, para seguirem até S.
Jorge, o que se dispensaria se o V. do V. puzesse em Espinho, uma carruagem
directa para essas Caldas.
As populações
servidas por este ramal, desde a margem esquerda do Douro, que se destinassem
ao Sul, tomariam os comboios desse ramal até Ovar, para seguirem depois pela
C.P., ou ficariam na Vila da Feira para seguirem nos comboios do Vale do Vouga
até Viseu, capital das Beiras e cidade centro de turismo.
O ramal teria
assim como pontos obrigatórios: Furadouro, Ribeira de Ovar, Vila da Feira,
Caldas de S. Jorge, S. Pedro da Cova, Porto e Leixões…”
- Claro. Tal
como outros locais, parecia fazer sentido dotar a estância termal de uma
infraestrutura que nos ligasse a outros importantes pontos do país. Do norte a
sul, do litoral ao interior. O planeamento estratégico vem de longe…
III. Década de
90
Resolução do
Conselho de Ministros n.º 56/93
Diário da
República n.º 194/1993, Série I-B de 1993-08-19
O PDM de Santa
Maria da Feira, apresentava a intenção de se desenvolver um Estudo da área
destinada ao complexo turístico-desportivo da Marva (Varzea, Pigeiros e Caldas
de S. Jorge),
Um ambicioso
projecto turístico começava a ser gizado para a encosta do Uima. Equipamentos
desportivos, centro hípico, unidades de alojamento, restaurantes, bares,
parques, espaço natural.
Mais uma vez, o
desenvolvimento turístico estava à porta.
Quase na mesma
altura, o famoso Hotel de apoio às termas era construído junto ao denominado
“Nó da Cruz”…
IV. Final da
primeira década de 2000.
Hotel de Apoio
às Termas. Após uma vintena de anos o Hotel das Termas ter sido “encaminhado”
para a sede do concelho, a 10 quilómetros de distância, eis que um renovado
impulso parecia querer alavancar e deixar para trás o permanente “adiamento” dos desígnios de
Caldas de S. Jorge. Programa preliminar desenvolvido e validado. Deliberação do
município. Formalização de Concessão predial registada. Projecto Aprovado.
- Mesmo depois
de muitos anos, continuava a fazer sentido. A população interessou-se, aplaudiu
e engalanou-se.
Contudo, mais
uma vez, a “dança da surpresa”: promessa novamente adiada. Sonhos desfeitos.
Futuro suspenso.
Da
análise. 2022…
Pois. Agora a
análise, face ao intervalo temporal de um século de acontecimentos…
À outrora
elegante e diferenciadora “Princesa das Termas de Portugal” parece, de facto, restar
contentar-se com uma (duvidosa) intervenção de requalificação, desgarrada da
história e contextos sociais locais, desprovida de uma dimensão estratégica que
catapulte, em definitivo, esta imensa terra.
Na realidade, a
desarticulação entre os ritmos de desenvolvimento e o reforço de uma filosofia
ou de um desígnio para esta estância termal, assente no diálogo com os
habitantes e com o apoio aos sectores comerciais e empresariais locais, anula
rapidamente as bases das “mais bem intencionadas” políticas de desenvolvimento.
Lanço por isso
um apelo, especialmente a quem tem responsabilidade de decidir e se ocupa da
gestão do território, que rapidamente promova a discussão de um verdadeiro “Plano
de Revitalização e de Promoção Turística de Caldas de S. Jorge”. Que aborde a
temática do investimento voluntarista na reconstituição do tecido social de
solidariedade; que envolva a população na valorização dos serviços de
proximidade, nas formas de economia social; que promova o envolvimento dos
comerciantes e agentes locais na promoção turística da vila e da região, na criação de emprego ligado ao turismo, no
turismo ligado à indústria do brinquedo (e vice-versa), na criação do museu do
brinquedo, na valorização paisagística e ambiental, na criação de mecanismos
para a reabilitação do edificado existente ou na qualificação e apoio aos
estabelecimentos de restauração e bebidas, etc, etc, etc. No fundo, pensar de que
forma conseguiremos no futuro captar de novo visitantes? Fixar residentes?
Para além
disso, a “abordagem” à programação da empreitada e dos trabalhos em curso,
arrisca-se a ser catalogada, objectivamente, como um dos maiores contributos
para o gradual “definhamento” do comércio, actividades económicas e vivências
locais. É preciso, rapidamente, definir um critério de abordagem às frentes de
obra, maximizando as condições de segurança e a normalização da circulação,
mobilidade ou estacionamento.
Por vários
finais de semana consecutivos, é absolutamente desolador, deprimente e profundamente
preocupante, o reduzido número de visitantes que se veem a frequentar os
estabelecimentos locais.
Na verdade,
desejando estar completamente equivocado, provavelmente daqui a uns meses, após
as “questionáveis” opções e obras estarem concluídas, para além dos actuais
residentes, talvez nada mais reste a Caldas de S. Jorge do que uma simples
memória ou retrato ilustrativo daquele que já foi o mais belo lugar do mundo. Talvez...
- E agora?
PNCS, março de 2022
(Post
Scriptum: escrito de acordo com a anterior ortografia)
Hoje, domingo chuvoso, li pela primeira vez a suposta “memória descritiva” do projecto “requalificação urbana da área envolvente às termas das Caldas de S. Jorge”.
Procurarei continuar a não entrar nas questões relacionadas
com as opções estéticas e funcionais. Meramente por razões do foro
deontológico: valores que “outros” esqueceram…
Mas, não ficaria bem com a minha própria consciência caso não
partilhasse convosco a lamentável falta de rigor e de conhecimento daqueles
que, à sombra de uma qualquer lapiseira ou teclado, foram conduzindo a um chorrilho
de lamentáveis opções para o uso de um espaço que seria de todos. Que seria de
todos nós.
Uma coisa é gostar-se mais ou menos do betão e da linha gráfica
de um questionável modernismo. Outra coisa é, além do bacoco e pobre modernismo,
assumir-se a veleidade de intervir num território com história, com vivência e
com identidade, sem o conhecerem minimamente.
É absolutamente lamentável, para não aplicar outros
adjectivos, o desconhecimento do nome das praças, largos e jardins onde se
intervém. Este local mereceria outro
tipo de abordagem. Outro tipo de respeito.
- Jardim Nascente? Hã?
- Largo do Coreto? Como?
- Jardim central ou Rossio? O quê?
- Jardim poente (actual entrada das termas)? Pode repetir?
Nota-se, infelizmente, que esta intervenção há muito vaticinou o futuro.
Lamento. Lamento profundamente que assim seja(m). E que
mantenham orgulhosa e inexplicavelmente uma conduta de desrespeito pelo património,
pelo verde, por aquilo que estava bem, pela população (pelo menos por parte da
população).
Um dia, se quiserem, talvez possam estudar e perceber o que significam ou representam para nós, verdadeiramente, os espaços:
- “Jardim Dr. Carlos Ribeiro”;
- “Largo Abbade Ignacio Antonio da Cunha, Descobridor das
Águas Thermaes”;
- “Parque das Termas”;
- “Praça de S. Jorge”.
Mas isso, só um dia… um dia.
Quando não mais qualquer memória restar… quando o último
carvalho sucumbir… quando a última gota do Uíma secar. Um dia…
Cresço com Ele e à sua guarda, há quase 50 anos. Sempre foi belo, sereno e imponente.
Brincamos, escrevemos, lemos, registamos, desenhamos, falamos, vivemos
com Ele desde crianças. Sempre foi nosso. Sempre foi e será parte de cada um de
nós.
Evoquemos à sua vida e à sua resistência.
Que seja sempre uma inspiração. Porque qualquer desfaçatez,
jamais será perdoada.
Vem este registo a propósito pela forma desprezível de como,
mais uma vez e à socapa, pela calada da noite, derrubaram, impunemente, mais um “familiar”
próximo e chegado do Velho Carvalho da Sé. Sem razão. Sem apelo. Sem qualquer critério "fitossanitário". Sem o mínimo de
vergonha...
O novo PDM. A
derradeira oportunidade?
Nos últimos anos, genericamente um pouco por todo o país, assistiu-se a
uma evolução das condições ambientais, económicas e sociais às quais não é
alheia uma profunda alteração do novo enquadramento legal relativo ao regime de
solos e à actividade de planeamento (Lei de Bases da Política Pública de Solos,
de Ordenamento do Território e de Urbanismo (LBSOTU), a Lei n.º 31/2014, de 30
de maio, ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, publicado
pelo Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio, e demais legislação complementar,
que estabelece os critérios para a classificação e reclassificação do solo bem
como critérios de qualificação e das categorias do solo rústico e do solo
urbano.
De facto, a lei de bases procedeu a uma reforma
estruturante, quer no sentido de definir um conjunto de normas relativas à
disciplina do uso do solo, quer no sentido ou objectivo de traduzir uma visão
conjunta do sistema de planeamento e dos instrumentos de política de solos,
entendidos como plataformas de excelência da execução dos planos territoriais.
Com o novo “impulso” legislativo, ficou implícita a
eliminação da denominada categoria operativa de “solo urbanizável” enquanto
espaço territorial expectante e sem programação assinalável a curto, médio e
longo prazo.
Nesse âmbito, o solo urbano, corresponde ao que se encontra
total ou parcialmente urbanizado ou edificado e, como tal, afecto em plano
territorial (pdm) à urbanização ou edificação. Por outro lado, o solo rústico,
corresponde àquele que, pela sua reconhecida aptidão, se destina, nomeadamente,
ao aproveitamento agrícola, pecuário, florestal, à conservação e valorização de
recursos naturais, à exploração de recursos geológicos ou de recursos
energéticos, assim como o que se destina a espaços naturais, culturais, de
turismo e recreio, e aquele que não seja classificado como urbano.
Em suma, numa linguagem popular, os critérios para que um
prédio ou espaço territorial, se possa doravante considerar apto para fins
construtivos, traduzir-se-ão na existência de edificações e sua consistência
territorial ou de frente urbana e, ainda, pela consolidação do funcionamento
das várias infraestruturas, nomeadamente via pavimentada, rede eléctrica, rede
de abastecimento de água e saneamento.
Feito o enquadramento, e no caso de Santa Maria da Feira,
decorridos poucos anos sobre a publicação da primeira revisão do PDM, surge
então a necessidade de adequar o plano director municipal aos novos conceitos
de classificação e uso do solo, iniciando-se assim um novo ciclo que culminará,
certamente, com a consolidação de um renovado instrumento de gestão
territorial: o denominado pdm de 3.ª geração.
Tendo sido deliberado o início do procedimento em 2019 e com
prazo de elaboração e publicação até ao último trimestre de 2021, “quis” a pandemia
COVID19 originar a necessidade da prorrogação desse mesmo prazo até final de
2022. Tal prazo, devidamente consagrado pelo Decreto-Lei N.º 25/2021, de 29 de
março (alteração ao Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio), vem por isso,
CONVOCAR-NOS A TODOS, PARA UMA REFLEXÃO CONJUNTA SOBRE O QUE QUEREMOS PARA A
NOSSA TERRA.
Esta será, por ventura, a derradeira oportunidade para
reforçarmos e afirmarmos o nosso território, a sua resiliência e a promoção de
uma maior qualidade de vida para os feirenses.
O desafio é, pois, dar resposta aos temas emergentes da sustentabilidade
e da solidariedade intra e intergeracional: seja na prioridade à reabilitação e
regeneração urbana, na colmatação, diversificação funcional e flexibilização
regulamentar do uso do solo… seja na valorização ambiental, paisagística e de
biodiversidade ou de utilização do solo de acordo com a sua natureza e aptidão.
Seja na promoção de uma mobilidade sustentável, na eficiência energética e
adaptação às alterações climáticas… seja na coesão, solidariedade e
participação cívica dos cidadãos nas dinâmicas territoriais.
Além disso, no caso da classificação e uso de solo, nada garante que um
determinado prédio, actualmente inserido em “zona de construção”, possa manter
esse mesmo estatuto. Existem inúmeras variáveis que o podem condicionar ou até
alterar. E o cidadão comum têm direito de o saber: todos os dias existem opções,
acordos familiares, transacções ou negócios jurídicos que importam acautelar.
Mesmo do ponto de vista de enquadramento fiscal, IMI, IMT, está tudo em jogo…
Esta revisão do PDM é muito mais do que uma simples adequação gráfica ou
escrita.
Por isso, TODOS contam. O que está em causa é demasiado importante para
não ser um processo participado. Impõe-se, por isso, convocar toda a
população para o debate.
Nunca como agora as noções de escala, respeito pelo sítio, dimensão
estratégica, a percepção/antecipção dos custos de infraestruturação e
sua respectiva manutenção se assumiram como critérios tão relevantes a
ponderar. Assim, parece resultar claro que a classificação e reclassificação do
solo (como e para) urbano estará limitada ao indispensável, pelo que se afigura
aconselhável e mesmo necessária a sua efectiva programação.
E por fim, a questão da nossa dimensão estratégica.
O município tem, objectivamente, de “dizer ao que anda”. O que queremos
para as nossas cidades, vilas ou aldeias. Como queremos programar as nossas
infraestruturas, qual o seu impacto, o seu verdadeiro custo. Quem, quando e
como se pagam?.
Não mais será possível condicionar o território com espaços ou vias
estruturantes que, ao fim de 30 anos não foram programados nem executados… Não
mais será possível fazer crescer um território sem a prévia estruturação e
programação das suas infraestruturas e equipamentos de apoio. Não mais será
possível delimitar grandes áreas vazias e expectantes à mercê de quaisquer
lógicas de especulação imobiliária.
Espero que, em breve, toda a população seja convocada para o debate e
para a decisão. Trata-se de um imperativo legal e de consciência. Temos três meses…
Será pois, com base nessa lógica, que contribuiremos e traduziremos
parte do nosso compromisso face às gerações vindouras…
Caldas de S. Jorge, novembro 2021
Pedro Castro e Silva,
Arquitecto
(escreve de
acordo com a anterior ortografia)
Lembro-me bem o que foi receber em Caldas de S. Jorge reputadíssimos
especialistas do Instituto Superior Técnico de Lisboa e da Universidade de
Mimar Sinan e das Belas Artes de Istambul (Turquia).
Um salutar e interessante trabalho com técnicos e gente de cá. Durante 4 dias, “Um
olhar para o futuro”.
Como as ideias "estariam" actuais... Julgo.
“Átrium” das Termas, 21 horas do dia 2 de Abril. Noite fria, como quase todas
as noites desta terra também caracterizada pelo seu microclima. Sala cheia…
de gente. De gente que sente… de calor humano.
É destes encontros que, normalmente, resultam renovados desafios e congregadores
pontos de vista. Partilha de experiências, filosofias, métodos de abordagem.
Desígnios.
É fundamental (re)pensar a problemática do espaço urbano ou do espaço rural.
Reflectir, só ou em conjunto, com pessoas de cá e de outras paragens. Lembrar memórias, ponderar experiências sobre o tratamento do espaço
público.
Como sempre referi, as cidades nascem e crescem... mas também
declinam e morrem quando lhes faltam os recursos que as mantêm vivas e, acima
de tudo, quando não possuem um projecto de vida próprio.
E é pois esse projecto de vida colectivo das nossas aldeias, vilas e cidades que
importa pensar, no sentido da procura das melhores soluções para a
definição de uma filosofia de desenvolvimento e que contribua para o reforço e
valorização da sua identidade.
Todos, à nossa medida e à nossa escala, temos ideias para o espaço que nos
rodeia e nos envolve. E todas serão válidas. Por isso é que o processo de
planeamento deve ser participado. Por isso é que se realizam iniciativas como a
de 2009. Por isso é que se convoca a comunidade a estar presente.
Como dizia o saudoso amigo Costa Lobo, “…não deve haver receio em obter
outros pontos de partida... devemos estar disponíveis para a chamada terceira solução…”. Acrescentaria que
não devemos recear elevar a discussão em torno destas problemáticas dos
“sítios e lugares”, do ambiente, da ecologia, das memórias colectivas, da
relação entre o construído e o natural, da vivência de cada um e a sua relação com o conjunto de aspectos do quotidiano que nos envolve. É disso que
se trata.
O desafio é reforçar identidades. Um dia, quem sabe, os projectos e os sonhos talvez se possam transformar em realidade. No caso de Caldas de S. Jorge poderia referir, nomeadamente,
a definição de um programa operacional em torno da actividade termal e turística,
a relação das termas com a comunidade, a consolidação de dinâmicas ligadas
à natureza com base numa espécie de “riverway” em que o Uíma seja denominador comum, a
requalificação do espaço construído e degradado no qual se inclui, entre outros,
a “Casa da Pines” enquanto “pousada de charme” ou até a criação de condições para a instalação da “casa/museu da puericultura, do brinquedo
e dos carrinhos de bebé”... ou ainda o desejo de voltar a sentir e respirar uma
certa brisa quente com ligeiro toque a enxofre.
Para que isso seja possível, é fundamental que se gerem discussões e debates. É
fundamental criar consensos e desígnios comuns. É necessário, acima de tudo, sentir
o pulsar de todas as pessoas. De todas as pessoas.
Se assim for, talvez a prazo, nos possamos voltar a afirmar como “território
modelo” no âmbito da região metropolitana. Um território assente na lógica do
bem estar, dedicado ao eco-turismo, um “espaço paisagem”... no fundo, que se
possa reconfirmar como um marco territorial. Que sempre foi. Que o é.
Como já dizia Ebenezer Howard em 1898, o pioneiro moderno da descentralização da cidade industrial, com a invenção da cidade-jardim, o pensamento sobre as vilas e cidades assenta em 3 princípios fundamentais:
- A terra deve pertencer à comunidade;
- Todas as pessoas devem estar envolvidas no planeamento;
- Deve haver harmonia entre o espaço construído e o ambiente natural.
É desta simbiose que se “constrói” o território.
PNCS
(escreve de acordo com a anterior
ortografia)
Distinguir o feio do bonito, o básico do distinto, o natural
do supérfluo é, desde os primórdios, um exercício que nos remete para uma
dimensão metafísica da realidade.
Claro que nos reservamos ao direito de considerar que, apesar
de tudo, essa é uma característica que se… cultiva e aprende.
Mas, quando se trata do respeito e da compreensão dos desígnios de um lugar, isso… bom, isso é uma característica que não se compra. Sente-se. Vive-se. Morre-se com ela.
Quem, desde pequenino, cresceu à "guarda" do velho Carvalho de Sé, brincou à sombra dos frondosos plátanos do parque, e respirou a leve e quente brisa com ligeiro toque a enxofre, sabe do que falo…
Pedro
Hoje, catorze de novembro, é o dia dos anos do meu irmão Pedro, uma das pessoas que mais amei no mundo, o único de nós que saiu moreno, de cabelo preto, quase sempre calado. Nunca invejou ninguém: era livre. Nunca disse mal de ninguém: era livre. Nunca discutiu com ninguém: era livre. Fez sempre, desde criança, o que quis: era livre. Não lhe interessava o dinheiro, nem o sucesso, nem o aplauso dos outros. Não criticava fosse quem fosse. Não falava mal de ninguém. Misterioso, secreto, muito raramente mostrava o que sentia e, apesar do seu silêncio imperturbável, percebia-se que gostava de nós, sem palavras, sem pieguices, sem exibir emoções. Não se queixava de nada conforme, aparentemente, não se zangava com quase nada. A pouco e pouco os pais foram-se apercebendo que não valia a pena enervarem-se com ele. Não lhes respondia que não, concordava sempre.
– Sim, mãe,
sim pai
mas apenas
fazia o que lhe dava na gana, sem argumentar.
– Isto não é
hotel, Pedro
– Sim, mãe
– O jantar é
às oito e meia, Pedro
– Sim, mãe
telefonava a
dizer que chegava mais tarde, a mãe
– Mas onde é
que tu estás, Pedro?
– Do outro
lado da linha, mãe
e como é que
se lhe podia ralhar depois disto? Aliás era inútil ralhar–lhe porque ele não
protestava. No fim da descompostura concordava sempre
– Sim, mãe
numa
serenidade amável que impedia exaltações e castigos. Uma ocasião fiz-lhe uma
coisa horrível: tinha pedido que fosse lá abaixo à mercearia comprar-me papel
para escrever, eu com catorze anos e ele com onze, respondeu-me tranquilamente
sentado no tapete, a brincar com não sei quê
– Não vou
calmíssimo
– Não vou
eu ameacei,
com medo que, indo eu à mercearia, se me acabasse a inspiração
– Se não
vais digo ao pai que tu fumas
o Pedro nem
se deu à perda de tempo de falar, indiferente àquela maldade estúpida
(o que eu continuo a arrepender-me dessa sacanice)
ameacei-o de novo
– Se não
vais digo ao pai que tu fumas
ele
continuou a brincar, completamente nas tintas, tive de ir buscar o papel e a
inspiração acabou-se de facto, à hora de jantar o pai sentou-se à cabeceira,
eu, furioso com a morte de uma obra prima, interrompi o silêncio da sopa
– Pai o
Pedro fuma
o silêncio,
se possível, aumentou ainda mais, à medida que eu começava a torcer-me de
remorsos
(fui um
cabrão)
enquanto o
pai para ele, na esperança que o Pedro negasse
– Tu fumas,
Pedro?
novo
silêncio enquanto eu com ganas de me enforcar no candeeiro do tecto(nunca na
vida fui
tão cabrão)
no silêncio
a voz do pai a insistir
– Tu fumas,
Pedro?
esperando
que o Pedro negasse, pedindo a Deus que o Pedro negasse, o pai que odiava a
mentira, suplicando que o Pedro negasse, o Pedro na tranquilidade de sempre
– Fumo, pai
mais
silêncio durante o qual o pai me olhou com ódio, o pai de novo, num suspiro
– Tu fumas,
Pedro?
o Pedro na
mesma paz inalterável
– Fumo, pai
um silêncio
ainda mais comprido, que eu devia ter aproveitado para me suicidar, o pai num
suspiro
– Poisa a
colher no prato e espera-me lá em cima
o Pedro, na
paz do Senhor, poisou a colher e subiu as escadas, o pai levantou-se vertendo
um olhar suspenso na minha direção enquanto atirava o guardanapo para a toalha,
voltou passados minutos a detestar-me, o Pedro não voltou, no fim do jantar
mais horrível da minha vida levantámo–nos cada um para seu lado, a porta do quarto
do Pedro estava fechada, encontrei-o na manhã seguinte antes de sairmos para o
liceu, ele falou-me como se nada tivesse acontecido, o pai demorou dias sem
olhar para mim, eu demorei dias sem conversar com ninguém, feito em merda pela
minha filha da putice e o Pedro seguia igual. Não sei se me perdoou: sei que
esqueceu, e continuou a amar-me muito, conforme eu o amava muito a ele. Que eu
soubesse não odiava ninguém: era um miúdo livre. Quando morreu saí do quarto
dele no hospital porque o meu irmão Nuno me trouxe abraçado a dizer-me
– Anda bebé,
anda meu bebé
de maneira
que além de filho dos meus pais nesse dia fui filho do Nuno. E gostei. Manos
queridos. A maior manifestação de amor entre nós era fazermos chichi juntos, à
noite, para a cascata. Agora mijo sozinho. Infelizmente.
ANTÓNIO LOBO ANTUNES
(Crónica
publicada na VISÃO 1292, de 7 de dezembro de 2017)