segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O "velho" Carvalho da Sé...


O último guardião de um lugar e do modo de vida de um povo.

Cresço com Ele e à sua guarda, há quase 50 anos. Sempre foi belo, sereno e imponente.

Brincamos, escrevemos, lemos, registamos, desenhamos, falamos, vivemos com Ele desde crianças. Sempre foi nosso. Sempre foi e será parte de cada um de nós.

Evoquemos à sua vida e à sua resistência.

Que seja sempre uma inspiração. Porque qualquer desfaçatez, jamais será perdoada.

 

Vem este registo a propósito pela forma desprezível de como, mais uma vez e à socapa, pela calada da noite, derrubaram, impunemente, mais um “familiar” próximo e chegado do Velho Carvalho da Sé. Sem razão. Sem apelo. Sem qualquer critério "fitossanitário". Sem o mínimo de vergonha...

sábado, 27 de novembro de 2021

O novo PDM. A derradeira oportunidade?

 

O novo PDM. A derradeira oportunidade?


Nos últimos anos, genericamente um pouco por todo o país, assistiu-se a uma evolução das condições ambientais, económicas e sociais às quais não é alheia uma profunda alteração do novo enquadramento legal relativo ao regime de solos e à actividade de planeamento (Lei de Bases da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo (LBSOTU), a Lei n.º 31/2014, de 30 de maio, ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, publicado pelo Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio, e demais legislação complementar, que estabelece os critérios para a classificação e reclassificação do solo bem como critérios de qualificação e das categorias do solo rústico e do solo urbano.

De facto, a lei de bases procedeu a uma reforma estruturante, quer no sentido de definir um conjunto de normas relativas à disciplina do uso do solo, quer no sentido ou objectivo de traduzir uma visão conjunta do sistema de planeamento e dos instrumentos de política de solos, entendidos como plataformas de excelência da execução dos planos territoriais.

Com o novo “impulso” legislativo, ficou implícita a eliminação da denominada categoria operativa de “solo urbanizável” enquanto espaço territorial expectante e sem programação assinalável a curto, médio e longo prazo.

Nesse âmbito, o solo urbano, corresponde ao que se encontra total ou parcialmente urbanizado ou edificado e, como tal, afecto em plano territorial (pdm) à urbanização ou edificação. Por outro lado, o solo rústico, corresponde àquele que, pela sua reconhecida aptidão, se destina, nomeadamente, ao aproveitamento agrícola, pecuário, florestal, à conservação e valorização de recursos naturais, à exploração de recursos geológicos ou de recursos energéticos, assim como o que se destina a espaços naturais, culturais, de turismo e recreio, e aquele que não seja classificado como urbano.

Em suma, numa linguagem popular, os critérios para que um prédio ou espaço territorial, se possa doravante considerar apto para fins construtivos, traduzir-se-ão na existência de edificações e sua consistência territorial ou de frente urbana e, ainda, pela consolidação do funcionamento das várias infraestruturas, nomeadamente via pavimentada, rede eléctrica, rede de abastecimento de água e saneamento.

Feito o enquadramento, e no caso de Santa Maria da Feira, decorridos poucos anos sobre a publicação da primeira revisão do PDM, surge então a necessidade de adequar o plano director municipal aos novos conceitos de classificação e uso do solo, iniciando-se assim um novo ciclo que culminará, certamente, com a consolidação de um renovado instrumento de gestão territorial: o denominado pdm de 3.ª geração.

Tendo sido deliberado o início do procedimento em 2019 e com prazo de elaboração e publicação até ao último trimestre de 2021, “quis” a pandemia COVID19 originar a necessidade da prorrogação desse mesmo prazo até final de 2022. Tal prazo, devidamente consagrado pelo Decreto-Lei N.º 25/2021, de 29 de março (alteração ao Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio), vem por isso, CONVOCAR-NOS A TODOS, PARA UMA REFLEXÃO CONJUNTA SOBRE O QUE QUEREMOS PARA A NOSSA TERRA.

Esta será, por ventura, a derradeira oportunidade para reforçarmos e afirmarmos o nosso território, a sua resiliência e a promoção de uma maior qualidade de vida para os feirenses.

O desafio é, pois, dar resposta aos temas emergentes da sustentabilidade e da solidariedade intra e intergeracional: seja na prioridade à reabilitação e regeneração urbana, na colmatação, diversificação funcional e flexibilização regulamentar do uso do solo… seja na valorização ambiental, paisagística e de biodiversidade ou de utilização do solo de acordo com a sua natureza e aptidão. Seja na promoção de uma mobilidade sustentável, na eficiência energética e adaptação às alterações climáticas… seja na coesão, solidariedade e participação cívica dos cidadãos nas dinâmicas territoriais.

Além disso, no caso da classificação e uso de solo, nada garante que um determinado prédio, actualmente inserido em “zona de construção”, possa manter esse mesmo estatuto. Existem inúmeras variáveis que o podem condicionar ou até alterar. E o cidadão comum têm direito de o saber: todos os dias existem opções, acordos familiares, transacções ou negócios jurídicos que importam acautelar. Mesmo do ponto de vista de enquadramento fiscal, IMI, IMT, está tudo em jogo…

Esta revisão do PDM é muito mais do que uma simples adequação gráfica ou escrita.

Por isso, TODOS contam. O que está em causa é demasiado importante para não ser um processo participado. Impõe-se, por isso, convocar toda a população para o debate.

Nunca como agora as noções de escala, respeito pelo sítio, dimensão estratégica, a percepção/antecipção dos custos de infraestruturação e sua respectiva manutenção se assumiram como critérios tão relevantes a ponderar. Assim, parece resultar claro que a classificação e reclassificação do solo (como e para) urbano estará limitada ao indispensável, pelo que se afigura aconselhável e mesmo necessária a sua efectiva programação.

E por fim, a questão da nossa dimensão estratégica.

O município tem, objectivamente, de “dizer ao que anda”. O que queremos para as nossas cidades, vilas ou aldeias. Como queremos programar as nossas infraestruturas, qual o seu impacto, o seu verdadeiro custo. Quem, quando e como se pagam?.

Não mais será possível condicionar o território com espaços ou vias estruturantes que, ao fim de 30 anos não foram programados nem executados… Não mais será possível fazer crescer um território sem a prévia estruturação e programação das suas infraestruturas e equipamentos de apoio. Não mais será possível delimitar grandes áreas vazias e expectantes à mercê de quaisquer lógicas de especulação imobiliária.

Espero que, em breve, toda a população seja convocada para o debate e para a decisão. Trata-se de um imperativo legal e de consciência. Temos três meses…

Será pois, com base nessa lógica, que contribuiremos e traduziremos parte do nosso compromisso face às gerações vindouras…

 

 

Caldas de S. Jorge, novembro 2021

 

Pedro Castro e Silva, Arquitecto

(escreve de acordo com a anterior ortografia)

sábado, 17 de abril de 2021

Olhares


Admito que alguns se recordem. Fez, neste início de mês, 12 anos.

Lembro-me bem o que foi receber em Caldas de S. Jorge reputadíssimos especialistas do Instituto Superior Técnico de Lisboa e da Universidade de Mimar Sinan e das Belas Artes de Istambul (Turquia).
Um salutar e interessante trabalho com técnicos e gente de cá. Durante 4 dias, “Um olhar para o futuro”.
Como as ideias "estariam" actuais... Julgo.

“Átrium” das Termas, 21 horas do dia 2 de Abril. Noite fria, como quase todas as noites desta terra também caracterizada pelo seu microclima. Sala cheia… de gente. De gente que sente… de calor humano.

É destes encontros que, normalmente, resultam renovados desafios e congregadores pontos de vista. Partilha de experiências, filosofias, métodos de abordagem. Desígnios.

É fundamental (re)pensar a problemática do espaço urbano ou do espaço rural. Reflectir, só ou em conjunto, com pessoas de cá e de outras paragens. Lembrar memórias, ponderar experiências sobre o tratamento do espaço público.

Como sempre referi, as cidades nascem e crescem... mas também declinam e morrem quando lhes faltam os recursos que as mantêm vivas e, acima de tudo, quando não possuem um projecto de vida próprio.

E é pois esse projecto de vida colectivo das nossas aldeias, vilas e cidades que importa pensar, no sentido da procura das melhores soluções para a definição de uma filosofia de desenvolvimento e que contribua para o reforço e valorização da sua identidade.

Todos, à nossa medida e à nossa escala, temos ideias para o espaço que nos rodeia e nos envolve. E todas serão válidas. Por isso é que o processo de planeamento deve ser participado. Por isso é que se realizam iniciativas como a de 2009. Por isso é que se convoca a comunidade a estar presente.

Como dizia o saudoso amigo Costa Lobo, “…não deve haver receio em obter outros pontos de partida... devemos estar disponíveis para a chamada terceira solução…”. Acrescentaria que não devemos recear elevar a discussão em torno destas problemáticas dos “sítios e lugares”, do ambiente, da ecologia, das memórias colectivas, da relação entre o construído e o natural, da vivência de cada um e a sua relação com o conjunto de aspectos do quotidiano que nos envolve. É disso que se trata.

O desafio é reforçar identidades. Um dia, quem sabe, os projectos e os sonhos talvez se possam transformar em realidade. No caso de Caldas de S. Jorge poderia referir, nomeadamente, a definição de um programa operacional em torno da actividade termal e turística, a relação das termas com a comunidade, a consolidação de dinâmicas ligadas à natureza com base numa espécie de “riverway” em que o Uíma seja denominador comum, a requalificação do espaço construído e degradado no qual se inclui, entre outros, a “Casa da Pines” enquanto “pousada de charme” ou até a criação de condições para a instalação da “casa/museu da puericultura, do brinquedo e dos carrinhos de bebé”... ou ainda o desejo de voltar a sentir e respirar uma certa brisa quente com ligeiro toque a enxofre.

Para que isso seja possível, é fundamental que se gerem discussões e debates. É fundamental criar consensos e desígnios comuns. É necessário, acima de tudo, sentir o pulsar de todas as pessoas. De todas as pessoas.

Se assim for, talvez a prazo, nos possamos voltar a afirmar como “território modelo” no âmbito da região metropolitana. Um território assente na lógica do bem estar, dedicado ao eco-turismo, um “espaço paisagem”... no fundo, que se possa reconfirmar como um marco territorial. Que sempre foi. Que o é.

Como já dizia Ebenezer Howard em 1898, o pioneiro moderno da descentralização da cidade industrial, com a invenção da cidade-jardim, o pensamento sobre as vilas e cidades assenta em 3 princípios fundamentais:

- A terra deve pertencer à comunidade;
- Todas as pessoas devem estar envolvidas no planeamento;
- Deve haver harmonia entre o espaço construído e o ambiente natural.

É desta simbiose que se “constrói” o território.


PNCS

(escreve de acordo com a anterior ortografia)

sábado, 10 de abril de 2021

Desígnios


 

Distinguir o feio do bonito, o básico do distinto, o natural do supérfluo é, desde os primórdios, um exercício que nos remete para uma dimensão metafísica da realidade.

Claro que nos reservamos ao direito de considerar que, apesar de tudo, essa é uma característica que se… cultiva e aprende.

Mas, quando se trata do respeito e da compreensão dos desígnios de um lugar, isso… bom, isso é uma característica que não se compra. Sente-se. Vive-se. Morre-se com ela.

Quem, desde pequenino, cresceu à "guarda" do velho Carvalho de Sé, brincou à sombra dos frondosos plátanos do parque, e respirou a leve e quente brisa com ligeiro toque a enxofre, sabe do que falo…

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Pedro (por António Lobo Antunes)

 

Pedro


Hoje, catorze de novembro, é o dia dos anos do meu irmão Pedro, uma das pessoas que mais amei no mundo, o único de nós que saiu moreno, de cabelo preto, quase sempre calado. Nunca invejou ninguém: era livre. Nunca disse mal de ninguém: era livre. Nunca discutiu com ninguém: era livre. Fez sempre, desde criança, o que quis: era livre. Não lhe interessava o dinheiro, nem o sucesso, nem o aplauso dos outros. Não criticava fosse quem fosse. Não falava mal de ninguém. Misterioso, secreto, muito raramente mostrava o que sentia e, apesar do seu silêncio imperturbável, percebia-se que gostava de nós, sem palavras, sem pieguices, sem exibir emoções. Não se queixava de nada conforme, aparentemente, não se zangava com quase nada. A pouco e pouco os pais foram-se apercebendo que não valia a pena enervarem-se com ele. Não lhes respondia que não, concordava sempre.

– Sim, mãe, sim pai

mas apenas fazia o que lhe dava na gana, sem argumentar.

– Isto não é hotel, Pedro

– Sim, mãe

– O jantar é às oito e meia, Pedro

– Sim, mãe

telefonava a dizer que chegava mais tarde, a mãe

– Mas onde é que tu estás, Pedro?

– Do outro lado da linha, mãe

e como é que se lhe podia ralhar depois disto? Aliás era inútil ralhar–lhe porque ele não protestava. No fim da descompostura concordava sempre

– Sim, mãe

numa serenidade amável que impedia exaltações e castigos. Uma ocasião fiz-lhe uma coisa horrível: tinha pedido que fosse lá abaixo à mercearia comprar-me papel para escrever, eu com catorze anos e ele com onze, respondeu-me tranquilamente sentado no tapete, a brincar com não sei quê

– Não vou

calmíssimo

– Não vou

eu ameacei, com medo que, indo eu à mercearia, se me acabasse a inspiração

– Se não vais digo ao pai que tu fumas

o Pedro nem se deu à perda de tempo de falar, indiferente àquela maldade estúpida
(o que eu continuo a arrepender-me dessa sacanice)
ameacei-o de novo

– Se não vais digo ao pai que tu fumas

ele continuou a brincar, completamente nas tintas, tive de ir buscar o papel e a inspiração acabou-se de facto, à hora de jantar o pai sentou-se à cabeceira, eu, furioso com a morte de uma obra prima, interrompi o silêncio da sopa

– Pai o Pedro fuma

o silêncio, se possível, aumentou ainda mais, à medida que eu começava a torcer-me de remorsos

(fui um cabrão)

enquanto o pai para ele, na esperança que o Pedro negasse

– Tu fumas, Pedro?

novo silêncio enquanto eu com ganas de me enforcar no candeeiro do tecto(nunca na vida fui

tão cabrão)

no silêncio a voz do pai a insistir

– Tu fumas, Pedro?

esperando que o Pedro negasse, pedindo a Deus que o Pedro negasse, o pai que odiava a mentira, suplicando que o Pedro negasse, o Pedro na tranquilidade de sempre

– Fumo, pai

mais silêncio durante o qual o pai me olhou com ódio, o pai de novo, num suspiro

– Tu fumas, Pedro?

o Pedro na mesma paz inalterável

– Fumo, pai

um silêncio ainda mais comprido, que eu devia ter aproveitado para me suicidar, o pai num suspiro

– Poisa a colher no prato e espera-me lá em cima

o Pedro, na paz do Senhor, poisou a colher e subiu as escadas, o pai levantou-se vertendo um olhar suspenso na minha direção enquanto atirava o guardanapo para a toalha, voltou passados minutos a detestar-me, o Pedro não voltou, no fim do jantar mais horrível da minha vida levantámo–nos cada um para seu lado, a porta do quarto do Pedro estava fechada, encontrei-o na manhã seguinte antes de sairmos para o liceu, ele falou-me como se nada tivesse acontecido, o pai demorou dias sem olhar para mim, eu demorei dias sem conversar com ninguém, feito em merda pela minha filha da putice e o Pedro seguia igual. Não sei se me perdoou: sei que esqueceu, e continuou a amar-me muito, conforme eu o amava muito a ele. Que eu soubesse não odiava ninguém: era um miúdo livre. Quando morreu saí do quarto dele no hospital porque o meu irmão Nuno me trouxe abraçado a dizer-me

– Anda bebé, anda meu bebé

de maneira que além de filho dos meus pais nesse dia fui filho do Nuno. E gostei. Manos queridos. A maior manifestação de amor entre nós era fazermos chichi juntos, à noite, para a cascata. Agora mijo sozinho. Infelizmente.

 

ANTÓNIO LOBO ANTUNES

(Crónica publicada na VISÃO 1292, de 7 de dezembro de 2017)