sábado, 9 de novembro de 2019

Falemos Claro (republicação)

Sábado, 18 de Setembro de 1915.
Quem, há quase um século, em Caldas de S. Jorge, numa manhã solarenga de finais de Verão, cinco anos após a instauração da República, tivesse a oportunidade de desfolhar o jornal “Democrata Feirense”, órgão do Partido Republicano Português, deparava-se com uma notícia que , vinda da então Comissão Executiva da Câmara Municipal do Concelho e Vila da Feira, presidida por Vitorino Joaquim Correia de Sá, aparentava ser uma das chaves para o desenvolvimento e para a promoção turística desta aldeia termal.
“...Faz público em conformidade da deliberação da Câmara Municipal de 31 de Agosto findo, e da deliberação desta Comissão Executiva tomada em sessão ordinária de 14 do corrente mês de Setembro, que pelo prazo de sessenta dias, que termina às quinze horas de 15 de Novembro próximo, se recebem propostas em carta fechada, que serão abertas em sessão do dia seguinte, para a construção de um Hotel-Casino nas Caldas de S. Jorge, sob garantia de juro prestada pela Câmara Municipal nos termos das condições e cláusulas patentes na secretaria municipal, cuja cópia será remetida ou entregue a quem a requisite.
Paços do Concelho da Feira, 15 de Setembro de 1915.”

Fazia sentido.

À semelhança do que se passava no país, e principalmente em aldeias ou vilas termais, a lógica de bem receber os aquistas e de lhes fornecer a comodidade e o descanso desejável, fazia todo o sentido. Era necessária a procura de novos conceitos ligados ao turismo que pudessem ser uma mais valia na promoção das termas de Caldas de S. Jorge.

Com um programa ambicioso para a época, o Hotel-Casino compreenderia, pelo menos, vinte quartos, sala para bilhar e jogos lícitos, na primeira fase a construir, a qual deveria ficar concluída na época balnear de 1916. Interessante era também o facto da entidade gestora ver-se obrigada a estabelecer, logo que fosse construída aquela primeira fase, um “...serviço de automóveis e carros de transporte de passageiros e bagagens entre o Hotel-Casino e a estação ou estações das vias férreas mais próximas, devendo então ser sujeita à aprovação da Câmara Municipal a tabela de preços do transporte de passageiros e bagagens em automóveis ou carros referidos, quando fossem requisitados pelos hóspedes do Hotel-Casino...”.

Falemos pois, claro.

O nosso grande desafio, para este início do século XXI (volvido um século após o acontecimento atrás referenciado), aponta no sentido do reforço da identidade que, desde há várias dezenas de anos, vem caracterizando esta emocionante freguesia central do município.
Quando digo nosso, quero evocar vários círculos concêntricos: - o movimento institucional e político, que vem necessariamente actualizando o seu modelo de gestão face às novas tendências do que é a sustentabilização de todo o território; - a corrente de opinião que, revendo-se ou não nos modelos preconizados, tem hoje, de se apresentar como participante interessada na acção desenvolvida e a desenvolver; - e, em geral, as forças sociais motivadas para procurar caminhos estratégicos adequados aos tempos que vivemos.

É nesse sentido que, tomando consciência dos efeitos redutores de uma estratégia fixada na total empresarialização dos serviços ligados à dinamização turística, podemos vir a pensar que a desarticulação entre os seus ritmos de desenvolvimento e o reforço de uma filosofia ou de um desígnio para esta estância termal, assente no diálogo com os habitantes e com o apoio dos sectores comerciais e empresariais locais, anula rapidamente as bases das mais bem intencionadas políticas de desenvolvimento.
Não é raro que as “conquistas” modernas de hoje signifiquem novos “encargos” sobre as gerações vindouras, ou reforcem os direitos dos que já se encontram em segmentos relativamente privilegiados “do mercado”, em desfavor dos restantes.
O neoliberalismo de cartilha, aquele que vê nas instituições públicas a fonte de todos os males e no mercado a fonte de todos os bens, pode ser até considerado, uma ficção. Basta pensar no que seria a economia privada sem os benefícios estatais, recebidos directa e (ou) indirectamente.
Como é evidente, a superação destas referências não significa ignorarmos as suas contribuições positivas.
Isto quer dizer que o desenvolvimento do turismo em Caldas de S. Jorge, particularmente, deve ser conduzido com cautela e adequadamente.
Contudo, esse desenvolvimento não pode ser mais adiado. Teremos de avançar com coragem, gradual mas consistentemente. O que precisamos de fazer vai chocar puristas e despertar resistências sectoriais; vai ser declarado impossível pelos mestres iluminados de cartilhas e de catástrofes. Mas, salvo melhor opinião, não pode afastar-se muito de uma combinação singular entre as três dimensões a citar:
A primeira será a da introdução de mais eficiência e mais qualificação no sistema arterial e urbano da vila. - Creio que esta já foi iniciada, havendo perspectivas francamente positivas nesse sentido.
A segunda dimensão será a de reorientação das estratégias de crescimento e desenvolvimento empresarial, comercial e urbano. - É bom assumir claramente que, sem descobrirmos o “para onde vamos?”, existe o perigo de uma dispersão que condiciona a convergência desejada.
A terceira será o investimento voluntarista na reconstituição do tecido social de solidariedade. - Este é um caminho para (re)descobrir, e sobre o qual temos pensado pouco. Estou a falar, por exemplo, do envolvimento da população na valorização dos serviços de proximidade, nas formas de economia social, no envolvimento dos comerciantes na promoção turística da vila e da região, na criação de emprego ligado ao turismo, no turismo ligado à indústria do brinquedo (e vice-versa), na criação do museu do brinquedo, na valorização paisagística e ambiental, na qualificação dos estabelecimentos de restauração e bebidas, etc, etc, etc.

Tudo isto porque, vem-se falando na eventual construção de um Hotel de apoio às termas, na sequência das obras de ampliação do balneário termal e da compra de uma considerável área de terreno na zona central da freguesia, por parte da Câmara Municipal. (Logicamente que o hotel deve fazer parte de um vasto programa de equipamentos e infra-estruturas que funcionem como pólo aglutinador de toda esta vila termal).
Ora, a questão reside em saber como exprimir as vantagens da iniciativa, isto é, como explicar que, sendo o hotel um equipamento desejado por todos, como é que se evita que ele irrompa apenas como encenação vulcânica, reduzindo-se à reivindicação imediata e corporativa , ou se auto-exclua da dinâmica participativa da população que, neste caso, deveria ficar assegurada pelos seus legítimos representantes (Câmara Municipal e Junta de Freguesia).
Creio estar tudo em aberto.
O repto que agora nos lançam deve ser, pois, tomado a sério.

(Novembro de 2003, in "Terras da Feira")

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