A
reflexão que a seguir se descreve, resulta de uma análise histórica a um conjunto de acontecimentos ocorridos nos últimos 100 anos em Caldas de S. Jorge,
que poderiam ter marcado e reorientado o reforço da identidade e posicionamento
estratégico daquela estância termal no topo dos destinos turísticos de Portugal.
Tratam-se
de acontecimentos e episódios comprovados, factual e documentalmente, mas
talvez desconhecidos da generalidade dos seus cidadãos.
Servindo
de pouco a velha máxima “chorar sobre leite derramado” importa, mesmo
assim, reflectir sobre os “encargos” e repercussões que determinadas decisões,
tomadas algures, por quem-quer-que-seja, tiveram e têm sobre as gerações
actuais ou futuras. No limite, porque as nossas decisões de hoje terão o
verdadeiro reflexo nas gerações dos nossos filhos ou mesmo dos nossos netos. É
disso que se ocupa a disciplina do planeamento.
Dos
factos,
I.
Ano 1915
Sábado, 18 de
Setembro de 1915.
Quem, há quase
um século, em Caldas de S. Jorge, numa manhã solarenga de finais de Verão,
cinco anos após a instauração da República, tivesse a oportunidade de desfolhar
o jornal “Democrata Feirense”, órgão do Partido Republicano Português,
deparava-se com uma notícia que, vinda da então Comissão Executiva da Câmara
Municipal do Concelho e Vila da Feira, presidida por Vitorino Joaquim Correia
de Sá, aparentava ser uma das chaves para o desenvolvimento e para a promoção
turística desta aldeia termal.
“...Faz público em conformidade da deliberação da Câmara Municipal de 31 de
Agosto findo, e da deliberação desta Comissão Executiva tomada em sessão
ordinária de 14 do corrente mês de Setembro, que pelo prazo de sessenta dias,
que termina às quinze horas de 15 de Novembro próximo, se recebem propostas em
carta fechada, que serão abertas em sessão do dia seguinte, para a construção
de um Hotel-Casino nas Caldas de S. Jorge, sob garantia de juro prestada pela
Câmara Municipal nos termos das condições e cláusulas patentes na secretaria
municipal, cuja cópia será remetida ou entregue a quem a requisite.
Paços do Concelho da Feira, 15 de Setembro de 1915.”
- Fazia
sentido.
À semelhança
do que se passava no país, e principalmente em aldeias ou vilas termais, a
lógica de bem receber os aquistas e de lhes proporcionar a comodidade e o
descanso desejável, fazia todo o sentido. Era necessária a procura de novos
conceitos ligados ao turismo que pudessem ser uma mais valia na promoção das
termas de Caldas de S. Jorge.
Com um
programa ambicioso para a época, o Hotel-Casino compreenderia, pelo menos,
vinte quartos, sala para bilhar e jogos lícitos, na primeira fase a construir,
a qual deveria ficar concluída na época balnear de 1916. Interessante era também
o facto da entidade gestora ver-se obrigada a estabelecer, logo que fosse
construída aquela primeira fase, um “...serviço de automóveis e carros de
transporte de passageiros e bagagens entre o Hotel-Casino e a estação ou
estações das vias férreas mais próximas, devendo então ser sujeita à aprovação
da Câmara Municipal a tabela de preços do transporte de passageiros e bagagens
em automóveis ou carros referidos, quando fossem requisitados pelos hóspedes do
Hotel-Casino...”.
II. Ano 1929
Sábado, 21 de
dezembro de 1929.
No Semanário
Republicano Independente “Correio da Feira”, era publicada, na sua primeira
página, uma carta dirigida ao Engenheiro dos Caminhos de Ferro de Portugal,
Conselheiro Fernando de Sousa. Na missiva, era feita referência à importância
estratégica de incluir no Plano da Rede Ferroviária Nacional, um ramal da Linha
do Vouga que promovesse a ligação da Vila da Feira até à estância termal de
Caldas de S. Jorge.
“…Aos
passageiros do norte, que em Espinho tomassem o Vale do Vouga, não lhes
custaria decerto fazerem o transbordo na Vila da Feira, para seguirem até S.
Jorge, o que se dispensaria se o V. do V. puzesse em Espinho, uma carruagem
directa para essas Caldas.
As populações
servidas por este ramal, desde a margem esquerda do Douro, que se destinassem
ao Sul, tomariam os comboios desse ramal até Ovar, para seguirem depois pela
C.P., ou ficariam na Vila da Feira para seguirem nos comboios do Vale do Vouga
até Viseu, capital das Beiras e cidade centro de turismo.
O ramal teria
assim como pontos obrigatórios: Furadouro, Ribeira de Ovar, Vila da Feira,
Caldas de S. Jorge, S. Pedro da Cova, Porto e Leixões…”
- Claro. Tal
como outros locais, parecia fazer sentido dotar a estância termal de uma
infraestrutura que nos ligasse a outros importantes pontos do país. Do norte a
sul, do litoral ao interior. O planeamento estratégico vem de longe…
III. Década de
90
Resolução do
Conselho de Ministros n.º 56/93
Diário da
República n.º 194/1993, Série I-B de 1993-08-19
O PDM de Santa
Maria da Feira, apresentava a intenção de se desenvolver um Estudo da área
destinada ao complexo turístico-desportivo da Marva (Varzea, Pigeiros e Caldas
de S. Jorge),
- Fazia
sentido.
Um ambicioso
projecto turístico começava a ser gizado para a encosta do Uima. Equipamentos
desportivos, centro hípico, unidades de alojamento, restaurantes, bares,
parques, espaço natural.
Mais uma vez, o
desenvolvimento turístico estava à porta.
Quase na mesma
altura, o famoso Hotel de apoio às termas era construído junto ao denominado
“Nó da Cruz”…
IV. Final da
primeira década de 2000.
Hotel de Apoio
às Termas. Após uma vintena de anos o Hotel das Termas ter sido “encaminhado”
para a sede do concelho, a 10 quilómetros de distância, eis que um renovado
impulso parecia querer alavancar e deixar para trás o permanente “adiamento” dos desígnios de
Caldas de S. Jorge. Programa preliminar desenvolvido e validado. Deliberação do
município. Formalização de Concessão predial registada. Projecto Aprovado.
- Mesmo depois
de muitos anos, continuava a fazer sentido. A população interessou-se, aplaudiu
e engalanou-se.
Contudo, mais
uma vez, a “dança da surpresa”: promessa novamente adiada. Sonhos desfeitos.
Futuro suspenso.
Da
análise. 2022…
Pois. Agora a
análise, face ao intervalo temporal de um século de acontecimentos…
- Será a
recorrente negação, uma “sina” deste território?... Será permanentemente suspenso,
o direito à irreversibilidade?
À outrora
elegante e diferenciadora “Princesa das Termas de Portugal” parece, de facto, restar
contentar-se com uma (duvidosa) intervenção de requalificação, desgarrada da
história e contextos sociais locais, desprovida de uma dimensão estratégica que
catapulte, em definitivo, esta imensa terra.
Na realidade, a
desarticulação entre os ritmos de desenvolvimento e o reforço de uma filosofia
ou de um desígnio para esta estância termal, assente no diálogo com os
habitantes e com o apoio aos sectores comerciais e empresariais locais, anula
rapidamente as bases das “mais bem intencionadas” políticas de desenvolvimento.
Lanço por isso
um apelo, especialmente a quem tem responsabilidade de decidir e se ocupa da
gestão do território, que rapidamente promova a discussão de um verdadeiro “Plano
de Revitalização e de Promoção Turística de Caldas de S. Jorge”. Que aborde a
temática do investimento voluntarista na reconstituição do tecido social de
solidariedade; que envolva a população na valorização dos serviços de
proximidade, nas formas de economia social; que promova o envolvimento dos
comerciantes e agentes locais na promoção turística da vila e da região, na criação de emprego ligado ao turismo, no
turismo ligado à indústria do brinquedo (e vice-versa), na criação do museu do
brinquedo, na valorização paisagística e ambiental, na criação de mecanismos
para a reabilitação do edificado existente ou na qualificação e apoio aos
estabelecimentos de restauração e bebidas, etc, etc, etc. No fundo, pensar de que
forma conseguiremos no futuro captar de novo visitantes? Fixar residentes?
Para além
disso, a “abordagem” à programação da empreitada e dos trabalhos em curso,
arrisca-se a ser catalogada, objectivamente, como um dos maiores contributos
para o gradual “definhamento” do comércio, actividades económicas e vivências
locais. É preciso, rapidamente, definir um critério de abordagem às frentes de
obra, maximizando as condições de segurança e a normalização da circulação,
mobilidade ou estacionamento.
Por vários
finais de semana consecutivos, é absolutamente desolador, deprimente e profundamente
preocupante, o reduzido número de visitantes que se veem a frequentar os
estabelecimentos locais.
Na verdade,
desejando estar completamente equivocado, provavelmente daqui a uns meses, após
as “questionáveis” opções e obras estarem concluídas, para além dos actuais
residentes, talvez nada mais reste a Caldas de S. Jorge do que uma simples
memória ou retrato ilustrativo daquele que já foi o mais belo lugar do mundo. Talvez...
Se assim for,
fica a interrogação:
- E agora?
PNCS, março de 2022
(Post
Scriptum: escrito de acordo com a anterior ortografia)